Texto extraído do primeiro capítulo do livro Origens do discurso democrático de Donaldo Schüler.

Não se busque em Homero um teórico da democracia. Homero é poeta. Seu ofício é produzir imagens. Como vive numa cidade em processo de democratização, revive matéria épica na experiência de todos os dias e assim dialoga com sua gente. Faz da epopéia um retrato do mundo. Hesíodo, atuando em situação política semelhante e interessado em sistematizar o mito, lança o olhar ao universo. Poeta como Homero, expõe com narrativas reelaboradas problemas do seu tempo.

Indícios de atitude democrática já nos esperam no princípio da Odisséia: "O homem, canta-me, ó Musa, o polýtropos". Ulisses é um herói polítropo (multiforme, versátil), ao contrário de Aquiles, em quem uma das peculiaridades, a fúria implacável (mênis), eclipsa as demais. Ulisses freqüenta muitos lugares, sejam geográficos ou caractereológicos. Age como orador, companheiro, amante, astuto, cavalheiro, atleta, combatente imaginoso, poeta, marinheiro, artesão, sedutor, seduzido, pai, filho. Ele é muitos, ele é polítropo. É tantos que chega a confundir-se com o homem enquanto espécie. Mentiu a Polifemo ao dizer que seu nome é Ninguém? Ora, quem é todos é ninguém. Foi assim que o entendeu Joyce ao reinventar Ulisses na pele de Leopold Bloom. Quem compara a Odisséia com a Ilíada observa que os muitos heróis da Ilíada contrastam com a ação concentrada em um só, Ulisses, na Odisséia. Um só que é muitos. Conheceu o espírito de muitos? Não é outra nossa experiência ao navegarmos nos ritmos de Homero. Em torno de Ulisses e no próprio Ulisses damos com muitos. O espírito (noos) do homem se desdobra sem limites. Um cristal de rocha é cristal de rocha. Só o homem é muitos, imprevisível, pilítropo.

 

Schüler, Donaldo. Origens do discurso democrático. L&PM Editores, rua Comendador Coruja 314, loja 9, Porto Alegre - RS, (51) 3225.5777, www.lpm.com.br.