O Orfeu da Floresta

A sabiá pula que pula, canta que canta, saltou de corpo e alma no ventre sombrio duma jararaca. Diga-se de passagem que a bicha vestia uma pele toda feita de desenhos geométricos dez vezes mais lindos que o melhor dos quadros de Mondrian. Como é que uma bicha tão atraente pode ser mortífera a ponto de abocanhar nada menos do que a rainha do canto?

O sabiá, coitado, se rolava de dor. Amava a sabiá como nada neste mundo nem no outro. Não comia, não bebia, não cantava, pedia pra morrer. Por que ainda ser sabiá se já nem sei piá? Entretanto, se quisesse findar os dias como a falecida, teria que procurar outro ventre porque a jararaca que tinha abocanhado a sabiá dormia na santa paz à sombra duma palmeira e assim ficaria até o dia em que a última peninha da amada tivesse virado carne da carne da devoradora cruel. No desespero, o sabiá estava decidido a tudo. Mas antes de cometer uma besteira de figurar no Registro dos Eventos Memoráveis da floresta foi procurar a coruja, a sábia.

- Olha, meu filho, posso imaginar o que sentes, mas não há o que reclamar. Certo gênero de répteis se alimenta, entre outras iguarias, de aves de pequeno porte. Assim é, assim foi e assim será pelos séculos dos séculos. Se queres fêmea procura outra. Diga a ela que tome cuidado, que viver é perigoso e que não fique sambando por aí, de rabo aceso, que nem passista de carnaval.

- Entenda-me, minha sábia, se vim aqui não foi para saber se devo ou não devo procurar outra. Quero esta e fim de papo.

- Tua fidelidade a uma sabiá comida é louvável. Mas o que está feito está feito. Bota isso na cachola e não me amola.

- Não dá pra dar um jeito?

- Filosoficamente, cientificamente, ornitologicamente não dá. Contudo, na mitologia é diferente, há o caso de um certo Orfeu...

O sabiá prestou atenção a tudo o que a sacerdotisa de Minerva disse. Procurou um espelho, dos pequenos, um desses que as damas carregam na bolsa, o suficiente para encobrir o corpo do tenor da floresta. O sabiá foi ao sítio onde dormia a jararaca e, protegido pelo espelho, aproximou-se da diaba ao jeito de Perseu quando enfrentou o olhar mortífero da Medusa. Ato contínuo se pôs a cantar como sabiá nenhum tinha cantado nem aquele memorável, imortalizado por Gonçalves Dias. As notas eram tão estridentes que o dragão, contrariando todas as regras, abriu os olhos e a bocarra. Dito e fito. O feitiço virou contra a feiticeira. A jararaca, fascinada pela sua própria imagem refletida, virou pedra. A sabiá saiu mui serelepe da boca escancarada e foi aconchegar-se na fofura plumosa do peito do amado. Os dois se abraçaram e caíram na sarabanda como acontece na última cena da ópera Orfeu e Eurídice de Christoph Willibald Gluck.

 

Do livro Refabular Esopo, Rio de Janeiro, Ed. Lamparina, tel. (21) 22.52.10.29.